Páginas

26/03/2013

Quinhentos e Um

Aquele apartamento é mais meu que dele próprio. Eu moro ali mesmo tendo minha casa própria a 30km dele. Eu moro ali mesmo não morando junto. Eu moro ali na onisciência. Conheço cada dobra de parede e já aprendi a desviar dos móveis no escuro. Não topo mais o dedinho no sofá muito menos bato o quadril na quina da mesa da cozinha. Sei do problema da máquina de lavar e me acostumei com o barulho que ele faz.

Macarrão na porta de cima. Os copos juntos no centro. O açucareiro fica na porta da direita e o saleiro e demais temperos na esquerda, não pode confundir. A bombona de água mineral tem posição certa na área de serviço. Eu decorei a posição da poeira. Conheço cada sujeirinha nos cantos e onde é o esconderijo da lagartixa que vive ali. Entre a cozinha e o quarto improvisado. Vez e outra próximo ao banheiro, mas sempre pelo corredor, nunca entrando. Eu sei de cór o que diz naquela caixa de notebook guardada na estante da sala. E rio sempre quando vou reproduzir cada frase. A tv da sala não funciona porque não tem tomada perto. Não existe tv a cabo e a geladeira tem mais cerveja que comida. Na bagunça do quarto, as camisetas pelo chão se misturam com bitucas de cigarro, cinzas e meias sujas. Apesar do esforço de manter as coisas separadas, acaba tudo junto e que se dane a organização. A cama não existe mais, é apenas um colchão jogado no chão e onde nenhum lençol consegue ficar parado.

Quando surge alguma dúvida, é meu telefone que toca. "Onde eu coloquei a garrafa de amaciante?", "Tu sabe onde a minha escova de dentes foi parar ontem? Sei que tá no meu quarto, mas não tô encontrando...". Salvo pelo gongo. Ou melhor, pelas minhas coordenadas de como se guiar dentro da própria casa.

Eu não sou pertencente, mas estou contida. Faço parte de um conjunto como membro imaginário. Uma questão matemática com um i na ponta. Eu não sou daquele Marte, eu vim de Vênus pra salvar a espécie. Pra socorrer. Para orientar. Tenho data marcada pra partir, mas não quero. Se aproxima e eu reluto. Quero ficar. Me deixe ficar! Não por descuido, talvez por poesia, mas deixe-me ficar! Ninguém mais conhece o macete pra abrir o cadeado sem a chave além de mim. E não vou ensinar como faz.