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29/10/2010

Secret.

Sou aquele pedacinho de papel, grudado na geladeira. Sou aquele pregador de roupas, fechando o pacote de biscoitos. Sabe aquela garoa fininha do fim do tarde? Sou eu. Sabe aquele trecho da música que você não consegue lembrar? Eu.
Eu sou tão invisível, tão imperceptível, tão inotável, tão in, que você não enxerga, não alcança. Mas eu alcanço você. Demaneiras tão distintas e tão distantes. Te afeto, te acerto, de maneiras tão singelas e simples, que você nunca vai perceber a minha existência.
Mas prefiro. Zelo discreto de um sentimento enorme.

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Estranheza.
Disformidade e distorção.
Não reconheci aqueles olhos no espelho. Eram diferentes dos que eu conhecia, eu nunca os tinha visto tão maculados e tristes, tão sujos pelo mundo. Não assimilava meu corpo, minha mente, não conseguia perceber se estava sóbria ou ainda inebriada.
O que eu havia feito? No que estava me transformando? Eu não era assim, eu não sou assim. Que estranho lapso de consciência havia me abatido para que não me lembrasse dos meus valores, dos meus conceitos, verdades e ensinamentos?
Embora procurasse respostas em todos os cantos obscuros em minha volta, a única coisa que encontrava era dor. Alheia e própria.
Dilacerando não a carne; dilacerando a mente, o meu eu, externo, interno, inteiro.
Precisava de recuperação. Urgente.

14/10/2010

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O cheiro dele era tão bom nas mãos dela quando ela ia deitar, sem ele. O cheiro dela era tão bom nas mãos dele quando ele ia deitar, sem ela. O corpo dela se amoldava tão bem ao dele, quando dançavam. Ele gostava quando ela passava óleo nas suas costas. Ela gostava quando, depois de muito tempo calada, ele pegava no seu queixo perguntando ? o que foi, guria? Ele gostava quando ela dizia sabe, nunca tive um papo com outro cara assim que nem tenho com você. Ela gostava quando ele dizia gozado, você parece uma pessoa que eu conheço há muito tempo. E de quando ele falava calma, você tá tensa, vem cá, e a abraçava e a fazia deitar a cabeça no ombro dele para olhar longe, no horizonte do mar, até que tudo passasse, e tudo passava assim desse jeito. Ele gostava tanto quando ela passava as mãos nos cabelos da nuca dele, aqueles meio crespos, e dizia bobo, você não passa de um menino bobo.

[Caio Fernando Abreu]



ex is ever present.

12/10/2010

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Sempre desprezei as coisas mornas, as coisas que não provocam ódio nem paixão, as coisas definidas como mais ou menos, um filme mais ou menos ,um livro mais ou menos.
Tudo perda de tempo.
Viver tem que ser perturbador, é preciso que nossos anjos e demônios sejam despertados, e com eles sua raiva, seu orgulho, seu asco, sua adoraçao ou seu desprezo.
O que não faz você mover um músculo, o que não faz você estremecer, suar, desatinar, não merece fazer parte da sua biografia.


[Martha Medeiros]

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Sou tão previsível como a programação da tv aos domingos. Principalmene quando ele chega. É tudo tão ensaiado, tão coreografado. Dá nervoso de pensar que alguma coisa pode sair errado. E se sair? Eu saio correndo ou improviso? Não sei, na hora eu vejo...

Deixa eu repassar; essa mão vai pra cá e para no cabelo, com a outra , gesticulo e toco nele de vez em quando... - Ah Janice, deixa de ser tão neurótica, vai menina! - Mas não dá, poxa! Ele é tão lindo que nem sei como olhar para ele direito.
O problema é que ele tá tão nem ai pra mim, e mal sabe ele, que esse naõ estar me deixa tão mais apaixonada...
inspirada no alemão ali.

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Existem dores que não são amenizadas.
Não existe Rivotril que consiga curar um coração que sofre.
Mas no instante resolve.
Se chapa. Se monga. Adormece.
Mas acora, e volta. E não resolve.
E vem a dor. E vem a lágrima. E vem o sofrimento.
E nada muda. E nada gira. E nada.
Aumenta a dose do Rivotril.
Se não adiantar, troca.
Diazepan, Lexotan. Quanta é a variedade.
É só escolher. Um ajuda. Um soluciona.
Não. Não soluciona. mas ajuda.
É triste? É. É desesperador? Também.
Mas passa. Uma hora passa.
Muda, segue, supera, passa, gira.
E tenta. Segue tentando.
Um dia você consegue.
Ser feliz, oras. Ser normal.
Enquanto isso, se chapa, se monga. Adormece.
E sonha.

Alegria! Alegria?


Abram alas, o circo chegou!
Cheio de atrações para encantar os adultos e a criançada, trazendo alegria para todos. Mágico, trapezista, malabarista. Equilibrista, contorcionista, palhaço...
Ah, o palhaço... que encanta e faz sorrir, que alegra até o mais rabugente dos seres. O palhaço, cheio de magia e brilho, não deixa o riso cessar, não deixa a graça acabar. O maior e o melhor, a grande atração, o que atrai o público. Mas é tão triste ser palhaço; por detrás de toda aquela maquiagem e pasta d'água, existe um homem, existe um coração, existem situações irremediaveis, insolucionaveis. Existem dores.
Palhaço também chora. Palhaço também sofre. Palhaço também é carne, também é osso. Palhaço também tem uma família a zelar, tem contas a pagar, tem sonhos a realizar. Podem ser Joãos, Josés, Pedros, Marcelos,entre tantos outros que tem apreensões, que tem dúvidas.
Mas são palhaços.
E no momento que pintam o rosto, o nariz se torna rubro e os pés tocam no picadeiro, os sonhos somem, os problemas desaparecem o RG é esquecido, e ali, naqueles próximos minutos, não existem dificuldades, não existem barreiras; tudo é riso, tudo é esquecimento; tudo é ali, naquele momento. É o trabalho deles. Depois se resolvem os problemas. Depois solucionam-se as dores. O importante é não deixar o riso cessar. Depois a vida volta. Quando o espetáculo acabar, quando a luz desligar, quando a lona fechar. Quando se voltar a ser humano, quando se voltar ao normal.
Não existe circo sem palhaço. Não existe palhaço sem dor.

10/10/2010

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O rico e o pobre são duas pessoas. O soldado protege os dois. O operário trabalha pelos três. O cidadão paga pelos quatro. O vagabundo come pelos cinco. O advogado rouba os seis. O juiz condena os sete. O médico mata os oito. O coveiro enterra os nove. O diabo leva os dez. E a mulher engana os onze."


[Nelson Rodrigues]

03/10/2010

Então...

E então ele volta.
E eu tinha planos. Minha convivência do dia-a-dia era tão magnífica. Eu havia me tornado amiga íntima da solidão. Ela que é tão cheia de truques e artimanhas, e eu tinha passado por tudo com louvor. Estava me tornando especialista em autodiversão, autosatisfação e autosuficiência. Eu havia me superado. Eu havia o superado.
E então ele volta.
Com o coração na mão, com lágrimas nos olhos e um pedido na alma. Como criança abandonada, pedindo um pouco de alimento, ele me chegou novamente. Pedia carinho, atenção e jurava fidelidade. Mas havia uma dúvida, havia uma cicatriz, havia um passado incompleto. Uma história com começo e com um final não definido.
E então ele volta.
Com as armas guardadas, a persuasão escondida, a falsidade pra fora e a sinceridade na face. Explicando porque se foi, argumentando porque voltou. E disse que não vai mais embora, e disse que vai entender, e disse que vai recuperar o tempo, e disse que quer o meu melhor sorriso sempre, e disse que me ama e que não sabe viver sem mim, e disse que percebeu o quanto eu sou importante. E meu coração sacana, safado, burro e desmemoriado, se convence.
E então ele fica.

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Mas de uma coisa eu sabia: cada segundo que eu passava com ela só iria aumentar a dor que eu sentiria depois. Como um viciado com seu suprimento limitado, o dia do ajustes de contas estava chegando. Quanto mais doses eu tomasse agora, mais difícil seria quando meu estoque acabasse.


[Amanhecer]