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22/12/2012

Conclusividades.

Pelo direito de ser porralouca. Pelo poder sentar no chão sem que ninguém venha me dizer que não posso. Pela vontade saciada de ir e vir como bem entender. Pelo sonho de poder ser quem eu quiser, o que eu quiser. Pelo direito de ser mulher e não ser meiguinha, delicadinha, guriazinha. Até porque eu nunca o soube ser. Não sei ser fresquinha.

Quero poder gritar com quem dobra e não dá seta. Poder externalizar uma dor falando uma imensidade de palavrões. Aliás, me são como vírgulas e pontos finais, porra. Tenho um trato educado com as pessoas, sei ser simpática como ninguém. Como cerimonialista, eu sou ouro. Mas não me peça pra ser princesinha. Nunca foi minha diversão me imaginar Cinderela ou Rapunzel. Eu queria sim ser uma personagem da Disney: A Mulan. E dispenso explicações de porquês.

Quando criança, cansei de arrancar tampões do dedão jogando futebol. Eu sei brigar como homem. Conheço as regras do futebol, do UFC, do basquete e do futebol americano. Criei-me num meio masculino. Sou masculinizada. Mas isso não faz de mim um homem. Sou como qualquer outra garota, mas com uma pitada extra de testosterona. Sou forte feito um touro e sei revidar ofensas. Chorar por coisa pouca não é comigo, sabe?!

Mas não sou desleixada. Sei cuidar de mim, sei ser vaidosa. Quando quero. Quando vejo interesse e vantagem em ser assim. Não saio de casa sem maquiagem ou perfume. É minha lei estar minimamente apresentável. E meu sentimental é estupidamente ortodoxo.Tenho minhas quedas de abismo por um sorriso torto ou um olhar castanho que tome conta de mim e amarre meus braços. Não sou de pedra. Apenas não enxergo um sentido plausível para perder horas na academia enquanto eu posso estar subindo em uma árvore ou brincando com algumas crianças. Eu também não cresci, sou criançona, sim senhor. Aceite isso como um dado e não tente mudar. Sou divertida assim, gosto de mim assim, me transformo quando quiser. Fim.

Aliás, essa é uma das minhas características mais bacanas. Ser camaleônica. Ser o que eu me impuser ser. Ser mulherão. Ser garotinho mimado. Ser artista. Ser palhaça. Ser séria. Ser juíza da razão. Sei ser réu culpado em primeira instância e condenado a prisão perpétua. Geminiana. Explicação de toda a mudança e metamorfose.

Enquanto as outras fazem cursos de modelo, eu corro descalça por ai. Enquanto as outras tem aulas de boas maneiras, eu grito meus palavrões ao ar livre. Enquanto elas querem ser nutricionistas, bailarinas, eu quero ser soldado, marinheira. Quando elas deitam pra dormir, penteiam os cabelos e hidratam a pele; eu deito de qualquer jeito e ronco. Sou primitiva, sim. Sou mulher das cavernas. Entendam como quiserem, essa afirmação.

Enquanto as outras saem para as festas caçando, eu leio meus livros de ficção da época medieval. Muito mais divertido. Estranho? Talvez. Eu caço também, mas não faço disso minha razão de viver. Quando arrumo sarna, eu coço até ficar em carneviva. Não desisto.

Mas, pra finalizar. Enquanto as outras fazem de tudo para ficarem mais bonitas, eu jogo meu videogame. E afirmo com isso que eu sei ser mais feliz que elas. Com certeza.

18/12/2012

Ser ela. Ser ele. Ser eu. Apenaser.

E se eu dissesse que eu sou diferente? Que eu nado contra a correnteza, que eu não gosto do comum, que eu fujo do óbvio e que a contramão é o melhor caminho? Se eu contasse pra vocês que eu não sei ser igual a todos e que as crianças da escola só me fazem sentir pior, com todas as suas brincadeirinhas e preconceitos. Só porque sou menina e.. gosto de menina.

 Isso não é defeito. Isso não é doença. Isso não é uma escolha. Eu nasci assim, entendam!

 Querem calar minha voz e me impedir de lutar pelos meus direitos. Eu acho injusto. Querem "leificar" a minha cura, mas eu não leprosa pra fazer um tratamento médico. Eu sou gay. E não vejo problema nisso. Eu trabalho como qualquer outra pessoa. Eu sei sorrir como qualquer um. Minha constituição corporal é igual. Tenho os mesmos órgãos e sei pensar. Eu sou humana. Eu sou normal. Não admito que, por não ser comum, tratem-me como louca. Eu sou esperta, inteligente. Sei mais que muita gente. Minha cabeça é aberta, eu sei debater, argumentar. Não preciso levantar a minha voz para mostrar que estou certa, quando estou certa.

 Acredite em mim quando eu digo que isso pode acontecer com qualquer um, qualquer uma. Pode acontecer com seu filho. Você vai virar a cara para ele também? Mas você argumenta pifiamente "não, meu filho é/será bem educado". Ser gay não vai de educação, vai de mente. Você nasce gay. Ninguém se torna, você sempre é.

 Eu não peço que você me aceite. Eu não peço que você divida suas coisas comigo. Não quero mendigar nada. Eu não quero nada, além do que eu preciso para viver. Eu sou apenas mais uma das partes injustiçadas do mundo. E como todas elas, eu só exijo respeito. Respeito, sabe!? Quero somente que você ao cruzar comigo na rua, não me olhe com cara de desaprovação. Quero poder ir e vir, sem ter medo de morrer a qualquer momento. Quer apenas poder chegar onde quer que seja, e ninguém se afastar, só porque eu sou gay. Quero viver a minha vida de cabeça erguida, por ser o que sou. Independente de quem mora comigo. Quero poder ser o que eu quiser ser, sem que ninguém a ponte o dedo no meu nariz e diga que estou errada, que vou para o inferno... não, não, NÃO!

 Quero ser só, o que eu sonho ser. Cientista, escritora, economista, jornalista. Eu só quero ser eu. E viver, sem medo.

16/12/2012

Meu problema está em começar. Não importa o que seja. Um artigo, uma crônica, uma piada, uma vida, um esquecimento. Não sei agir junto a natureza sutil das coisas e partir do princípio certo de ser. É na confusão que eu me encontro e que busco justificativas para ir. Tenho sim dificuldade de dar o primeiro passo. Mas quando vou, é para não voltar ao início. Quando vou é adiante. Não costumo olhar
 para trás.
Cada um com a sua dificuldade. Eu me poupo da saída e penso. Outros não pensam, e saem. Esses quase sempre se perdem no meio do caminho, olham e voltam. Olhar para trás é pecado. Regredir. Ou vai ou fica. Impasse é coisa de gente fraca. E se for dar largada, em frente ou enfrente. Fugir, é atestado de fraqueza.

05/12/2012

Minha Infância Solitária

Fabrício Carpinejar


Eu era tão sozinho na infância que se aparecesse um fantasma pra falar comigo não ficaria com medo, mas conversaria com ele. Pediria para que a assombração não se assustasse, que saísse debaixo da cama, que viesse
 descrever os aborrecimentos e desabafar as circunstâncias da morte.
Puxaria uma cadeira para aliviar seu cansaço de atravessar paredes.
Se viesse arrastando correntes, abriria o cadeado com a chave pequeninha do porão, que funcionava maravilhosamente bem com fechaduras desconhecidas.
Olharíamos as ilustrações de Alice no País das Maravilhas e nadaríamos no lago de lágrimas da personagem.
Emprestaria um dos meus três abrigos escolares, afinal, os mortos costumam se vestir mal.
Iríamos juntos, de mãos dadas, para o colégio.
Dividiria minha Pastelina e meu Nescau.
Mostraria qual o banco de pedra predileto do recreio, com vista privilegiada das rodinhas das meninas bonitas.
Poderia chutar pinha no meio da rua: o bueiro seria o nosso gol.
Assistiríamos ao trânsito do banco de trás do Opala amarelo do pai.
Insistiria para a mãe preparar bolinho de arroz.
Ele me ajudaria a escalar árvores e muros.
Perguntaria se ele gostaria de brincar de gladiador com as tampas do lixo.
Teria alguém para andar de gangorra e fazer peso ao meu corpo.
Teria alguém para evitar o fim de pedra dos passarinhos.
Teria alguém para chorar a separação dos pais.
Teria alguém para me confortar nos exercícios de matemática.
Teria alguém que não me acharia estranho, esquisito, monstro.
Teria já alguém confirmado para minha festa de aniversário.
Eu seguraria o botão do bebedor enquanto ele se curvaria ao esguicho.
Ele me avisaria das pedras irregulares da praça.
Jogaríamos miolo de pão para as pombas.
O fantasma seria meu amigo predileto, meu confidente, meu guia de estimação. Muito melhor do que amigo imaginário – ostenta mais experiência.
Jamais recusaria sua visita.
Só esnoba o invisível quem não é carente. Sempre fui faminto de acontecimentos. Sempre fui ouvinte porque não tinha com quem trocar confidências até os oito anos.
Escutava vento, escutava chuva, escutava até o sol.
Vivi um claustro involuntário. Fui um monge mirim. Meus olhos cresceram pelo excesso de palavras por dizer.
Nunca desperdiçaria a chegada de um fantasma. Salvaria a minha solidão.