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16/08/2014

78 Dias



Pai,


Essa tarde eu assisti um filme. Ele contava a história de uma menina que tinha nos livros um escape, uma fuga pra essa loucura que é a vida. A vida dela se passava na guerra e narra como o Führer estava presente em cada momento daquela pequena. Durante uma cena, ela recebeu de presente um livro, para que escrevesse tudo que sentisse ou quisesse. Essa pessoa que lhe deu o livro era um judeu e entoou uma frase que me marcou como ferro em brasa: "Eu sempre estarei vivo em suas palavras", ou algo do gênero. E de fato, ele seguiu vivo nela. Ele e todos os outros que conquistaram o coração daquela menina de cabelos claros e magricela. Saumensch. Porquinha. Eu já conhecia esse filme, já o tinha assistido. O livro no qual ele foi baseado também. É um dos meus preferidos. 

Foi isso que de uma vez por todas me fez vir até aqui, sentar em frente a esse teclado e finalmente te escrever. Sempre procrastinando, deixava para depois. Te deixava pra depois, assim como fiz durante todo o tempo que pude te ter ao meu lado. Todas as brigas e todos os choros e todos os gritos. Nunca pensei que o silêncio doesse. Tinha nele um refúgio, agora ele é o meu tormento. Por Deus, como pode uma coisa se transformar assim!? 

Como disse antes, foi o filme que me fez vir até aqui e fazer o que já planejava a um mês ou dois. Te escrever, te colocar a par de tudo que acontece por aqui. Eu sei que tu olha por nós e espero que não se preocupe se as coisas estiverem mais confusas do que nunca. Não sabíamos como reagir diante do que aconteceu. Ninguém tem culpa, embora eu ainda carregue um ressentimento pela distância. Não me perdoarei. Mas, por favor, não seja como eu e me perdoe, me conceda isso. Se eu pudesse, estaria ali, junto de todo escarcéu. Deve ter sido difícil ter ido embora com tantos gritos em seus ouvidos e ninguém de fato para ajudar. Não tinha muito o que ser feito, acho. Mas espero, do fundo do coração, que não tenha sido ruim. Espero que o plano espiritual esteja te fazendo bem, espero que esteja feliz.

Aqui a gente segue, aos trancos, um pouco mais do que sempre foi. As duas ainda não se bicam e por pouco não saem no tapa. Seria imensamente engraçado se não fosse extremamente triste. Pequena tem trilhado o caminho dela. Trabalha e vive pra ela, como nunca deixou de fazer. Tem as ideias dela e precisa ir adiante com todas as coisas que ele deseja. Eu tenho orgulho dela ter o mesmo sangue que eu: o seu. Não sei se você sabe, mas foi ela que organizou todo o último carinho à sua morada terrena temporária. Ela forte, mais forte que qualquer outra pessoa, mas disso você sempre soube. 

Não sei se já chegou até aí, mas a Copa já acabou e o Brasil, como esperavas, fez um fiasco enorme. O vencedor não foi a seu agrado, como eu posso ter certeza, mas eles merecem, foram os melhores e ganharam com mérito. Outra coisa, não faço ideia se existe apenas um lugar para humanos e animais, mas se for assim, espero que a cadelinha pretinha e miúda que morava aqui ao lado deve estar aí com você. Não a chute, por favor. Brinque com ela! falando nisso, espero que a tia esteja bem. Ela, assim como você,não merecia ter ido tão cedo. E o vó também. Ele faz os versos dele aí? Ele tem tocado gaita? E quantos baixos ela tem? espero que ele também esteja bem. Nunca tive nada contra ele, mas a vida forçou uma distância. Entretanto, o gosto dele por escrever e contar histórias permaneceu em mim. 

Quanto a mim... Eu ainda continuo aqui sentada, esperando uma solução cair do céu. Pode ser que eu tenha medo de viver, mas não. Eu ainda não encontrei a hora certa ou o jeito certo de viver. E isso me assombra porque talvez eu nunca saiba. Segunda-feira eu volto pro lugar gelado e eu não sei o que esperar de lá. Não sei se as pessoas ainda me reconhecem e se elas ainda tem lembranças de como eu sorria. Você ainda se lembra? Eu lembro do seu sorriso meio banguela quando me via cantando a plenos pulmões no quarto. Eu sempre amei você tanto! Falando nisso, você já deve saber quem é o gafanhoto, com todo aquele cabelo bagunçado e aqueles olhos tristes. Foi ele quem me ajudou. E continua ajudando todos os dias. Ele tem um coração tão grande! Se você puder vê-lo, goste dele, ele merece! 

De resto, eu sinto muita, muita saudade. Você era meu bonequinho, eu gostava de te apertar e depois de tudo, eu tenho me reservado a fazer isso. Acho que assim como eu, você sabe que todas aquelas brigas e discussões nunca foram sérias. Mesmo com tanta desavença, a gente ainda sabia como se fazer rir. Hoje é difícil rir de verdade, com vontade sem que pareça uma afronta. Acho que não tem muito como fugir de toda essa coisa estranha que é viver e conviver com o pedaço que falta, o espaço vazio na cama, a poltrona vazia na sala. Vai demorar. As coisas tem corrido bem, do jeito que é possível. Aos pouco eles irão melhorar. Mas o buraco que você causa, nada, nada é capaz de fechar.

Esteja bem. Fique bem. 
E olhe por nós e sinta-se feliz.
Nós três nos sentimos por ter estado contigo.
E por elas também falo que te amamos muitos.

De todo o coração, que o 
eu mais possuo,

Janice.